Nesse ano  de 2021, Edgar Rodrigues completaria 100 anos. Para rememorar esse que foi nosso companheiro no Centro de Cultura Social desde a sua reorganização em  1985,  deixamos o link do video do documentário de Rute Zedron e de uma atividade online feita em 2020 em memória de Edgar.

https://www.youtube.com/watch?v=qrs5ZA6zQ_Q

https://www.youtube.com/watch?v=a63-e9e4zzE

Também republicamos parte do texto contido no boletim do CCS 27-31/2011, quando na ocasião de seu falecimento.

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Síntese sobre a vida e obra de Edgar Rodrigues

Por Marcelino Jeremias

Antônio Francisco Correia, que utilizava o pseudônimo de Edgar Rodrigues, nasceu em Angeiras, ao norte da cidade de Matosinhos, distrito do Porto (Portugal), em 12 de março de 1921, filho de Manuel Francisco Correia e Albina da Silva Santos.

Seu pai era militante anarcossindicalista e participava do "Sindicato das Quatro Artes", filiado à Confederação Geral do Trabalho (CGT) e à Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), envolvendo vários ofícios da construção civil de Matosinhos. Seus primos, Armindo da Silva Sarilho e Manuel Sarilho, também pertenciam ao sindicato.

No final de 1933, esse sindicato foi obrigado a fechar sua sede oficial por causa da repressão da ditadura militar comandada por Antônio Oliveira Salazar. Parte do seu acervo cultural foi guardado na casa da família de Manuel Francisco Correia, onde também passou a realizar-se reuniões noturnas de sua diretoria clandestinamente.

O garoto Antônio Francisco Correia, atrás da porta, escutava com muita curiosidade tudo o que era conversado naquelas reuniões.

Em 1936, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE, depois PIDE), invadiu de madrugada a moradia de Manuel Francisco Correia e o prendeu.

Antônio Francisco Correia foi várias vezes visitar o seu pai no presídio da polícia política, durante as dez semanas em que ele esteve preso, sem nenhum processo ou julgamento. Quando Manuel Francisco Correia foi solto, foi punido mais uma vez ao ser despedido do seu emprego, o que fez a família passar por uma situação econômica muito difícil.

Dois anos depois, Correia (como era chamado pelos mais próximos) escreveu seu primeiro artigo para o diário "Primeiro de Janeiro" (Porto), mas não foi publicado por causa da censura. Nessa mesma época, já havia começado a escrever os rascunhos que formariam seu primeiro livro.

No dia 1 ° de maio de 1939, Antônio Francisco Correia e alguns amigos faltam ao serviço como forma de protesto (nessa época era proibido manifestar-se no 1° de maio) e reúnem-se para reafirmar as origens anarquistas dessa data, que é um marco universal.

No dia 1 ° de março de 1940, filia-se ao Grupo Dramático Flor da Mocidade (teatro amador), de Santa Cruz Bispo, município de Matosinhos, onde conhece Ondina dos Anjos da Costa Santos, que foi sua companheira por toda a vida. Também fez parte da diretoria do Grupo Dramático Alegres de Perafita, onde conheceu o histórico militante anarquista José Marques da Costa.

Em setembro de 1946, o anarquista Luis Joaquim Portela1 e mais cinco presos políticos fogem da Fortaleza de Peniche. Dois anos depois, Antônio Francisco Correia conhece pessoalmente Luis Portela1 na clandestinidade e ajuda o companheiro a obter documentação falsa, porém, devido uma delação Luis Joaquim Portela é preso novamente2. No dia 19 de julho de 1951, Antônio Francisco Correia conhece pessoalmente o notório escritor anticlerical Tomás da Fonseca e, no dia seguinte, para fugir da perseguição política da ditadura portuguesa, embarca para o Brasil.

Assim que chegou ao Rio de Janeiro, conheceu os companheiros: Roberto das Neves, Manuel Perez, Giacomo Bottino, Ida Bottino, Germinal Bottino, Pascoal Graviria, José Romero, Ondina Romero, Angelina Soares, Diamantino Augusto, José Oiticica, João Peres Bouças, Carolina Peres, Ideal Peres, Afonso Vieira e outros.

A pedido dos dois últimos, entregou um texto de sua autoria, sobre a ditadura em Portugal, que foi publicado no jornal anarquista Ação Direta3 e logo estava participando do grupo editor do mesmo. Em seguida, com a ajuda de companheiros como Enio Cardoso, Domingos Rojas e Benjamim Cano Ruiz (entre outros), passou a publicar também textos na imprensa libertária internacional e adotou o pseudônimo de Edgar Rodrigues4.

Entre os dias 9 e 11 de fevereiro de 1953, participou de um encontro anarquista brasileiro, na residência de José Oiticica, onde conheceu outros militantes ácratas que atuavam em São Paulo: Edgard Leuenroth, Adelino Tavares de Pinho, Lucca Gabriel, Osvaldo Salgueiro e outros... Nesse período, também conheceu pessoalmente o escritor e jornalista espanhol Victor Garcia (Tomás-Germinal Gracia Ibars), o poeta e escritor romeno Eugen Relgis e o companheiro paraguaio Ceríaco Duarte.

Publicou seu primeiro livro "Na Inquisição do Salazar'' em maio de 1957, pela Editora Germinal, de Roberto das Neves. Tornou-se membro da Sociedade Naturista Amigos de Nossa Chácara (SNANC)5.

Em 7 de março de 1958, por iniciativa do Grupo Libertário Fábio Luz6, foi fundado o Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), em homenagem ao recém-falecido José Oiticica (22/07/1882 - 30/06/1957), com o propósito de continuar a prolífera obra do valoroso companheiro. O grupo que assinou a ata de fundação do CEPJO era composto por: Edgar Rodrigues, Afonso Alves Vieira, Ideal Peres, Esther de Oliveira Redes, Seraphim Porto, Manuel dos Santos Ramos, Francisco de Magalhães Viotti, Germinal Bottino, Fernando Gonçalves da Silva, Pedro Gonçalves dos Santos, Roberto Barreto Pedroso das Neves, Enio Cardoso e Raul Vital (Atayde da Silva Dias).

Entre as atividades do CEPJO, constavam conferências, cursos e leituras comentadas sobre arte, política, história, vegetarianismo, psicologia, teatro, cinema, literatura, geografia, sociologia e anarquismo. Os convites para as atividades eram feitos na imprensa diária. O Centro também promoveu, em conjunto com outros grupos, comícios do movimento estudantil e uma campanha pela libertação e asilo político do espanhol anarquista José Comin Pardillos.

Outra iniciativa do CEPJO foi a criação da Editora Mundo Livre que publicou os seguintes livros anarquistas: O Retrato da Ditadura Portuguesa, de Edgar Rodrigues (1962); A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos, de José Oiticica (2ª Edição - 1963); Anarquismo - Roteiro de Libertação Social, de Edgard Leuenroth (1963); O Humanismo Libertário e a Ciência Moderna, de Pedro Kropotkine ( 1964) e Erros e Contradições do Marxismo, de Varlan Tcherkesoff (1964).

O Centro de Estudos Professor José Oiticica teve uma atuação anarquista durante doze anos ( cinco deles sob a repressão da ditadura militar brasileira, 1964-1985), até ser invadido, assaltado e fechado pelas forças armadas7. As prisões começaram no dia 8, e continuaram nos dias 9, 10, 15 e 21 de outubro de 1969.

Entre os presos, acusados e denunciados estavam: Edgar Rodrigues, Pietro Michele Stefano Ferrua, Ideal Peres, Antonio Costa, Fernando Gonçalves da Silva, Manoel dos Santos Ramos, Paulo Fernandes da Silva, Roberto Barreto Pedroso das Neves, Eli Briareu de Oliveira, Mário Rogério Nogueira Pinto, Antonio Rui Nogueira Pinto, Maria Arminda Sol e Silva, Antonio da Silva Costa, Elisa da Silva Costa, Roberto da Silva Costa e Carlos Alberto da Silva. Foram impronunciados: Míchelangelo Privitera e Esther de Oliveira Redes8.

Militantes anarquistas anônimos (pela conjuntura política da época) de São Paulo e de outras partes do Brasil contribuíram financeiramente com os gastos judiciais, numa grande demonstração de solidariedade libertária. O processo durou até 30 de novembro de 1971.

No mesmo período em que foi vítima desse processo militar, Edgar Rodrigues iniciou, numa atitude pioneira, a publicação de livros resgatando a história do movimento anarquista no Brasi19, e posteriormente, a história do movimento libertário português10.  Edgar Rodrigues escreveu 62 livros (entre 1957-2007), publicados sobretudo no Brasil e em Portugal, mas também na Itália, Venezuela e Inglaterra (alguns na terceira edição).

Por volta de 1976, participou junto com a companheira Elvira Boni, do documentário "O Sonho Não Acabou'' de Cláudio Khans, exibido algumas vezes na televisão e em eventos libertários.

Colaborou com o jornal anarquista O Inimigo do Rei enquanto ele existiu (1977-1988) e também escreveu mais de 17 60 artigos na imprensa de 15 países, entre eles: Voluntad (Uruguai), Solidaridad Obrera (França), A Batalha (Portugal), El Libertario (Cuba), Tierra y Libertad (México/ Espanha), El Sol (Costa Rica), C.N.T. (França), La Protesta (Argentina), Solidaridad Gastronómica (Cuba), I.:Adunata Dei Refrattari (Estados Unidos), Ruta (Venezuela), Reconstruir (Argentina), Voz Anarquista (Portugal), El Libertarío (Venezuela) e muitos outros.

Em abril-maio de 1986, participou do congresso pela reorganização da Confederação Operária Brasileira (COB), na sede do Centro de Cultura Social de São Paulo, na rua Rubino de Oliveira, número 85, Brás.

Em 21 de agosto de 1986, foi um dos sócios fundadores do arquivo Círculo Alfa de Estudos Históricos (CAEH) juntamente com: Nito Lemos Reis, Antonio Martinez, José Carlos Orsi Morel, Jaime Cubero, Francisco Cuberos, Felix Gil Herrera, Liberto Lemos Reis, Fernando Gonçalves da Silva e Ideal Peres11.  Nesse arquivo deixou boa parte dos materiais de estudo (livros, jornais, fotos, cartas, atas, memórias manuscritas e demais documentos, muitos deles cópias únicas) que reuniu durante toda uma vida dedicada ao resgate da trajetória das atividades anarquistas no Brasil e no Mundo. Conseguiu todo esse acervo visitando velhos companheiros anarquistas, convencendo-os a escreverem suas memórias, entrevistando-os, tendo correspondência com eles, comprando e conseguindo doações desses materiais com militantes históricos do movimento (novamente numa iniciativa pioneira para seus contemporâneos), tais como: Joaquim Fernandes, Manuel Lopes, Luís Saturnino, Manuel Perez, Ideal Peres, José Marques da Costa, José Francisco dos Passos, João Perdigão Gutierrez, Manuel Marques Bastos, Pedro Catallo, João Navarro, Adriano Botelho, Elias Iltchenco, entre outros ...12 [...]

Em abril de 2002, Rute Coelho Zendron fez "Um Estudo Sobre Edgar Rodrigues" pela PUC., que virou um interessante vídeo documentário sobre a vida e obra de Edgar Rodrigues13.

Edgar Rodrigues faleceu na noite de 14 de maio de 2009 (quinta-feira), na sua residência, no bairro do Méier (Rio de Janeiro), devido uma parada respiratória. Deixa esposa, filhos, netos, uma vasta obra anarquista para ser estudada e um grande exemplo a ser seguida.

 

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1. Ambos tinham trocado correspondência entre 1932-1937, enquanto Luís Joaquim Portela estava preso.

2. Em 10 de setembro de 1952.

3. "Fala Um Operário Português'' foi o primeiro artigo publicado por Antônio Francisco Correia, o texto saiu no jornal Ação Direta (Rio de Janeiro), número 80, em maio/junho de 1952.

4. Antônio Francisco Correia também chegou a escrever usando pseudônimos como Varlin, Zola e outros ...

5. A Sociedade Naturista Amigos de Nossa Chácara foi registrada em 9 de novembro de 1939, e o grupo que iniciou o trabalho de construção dela era composto por: Germinal Leuenroth, Nicola D' Albenzio, Virgílio Dall'Oca, Justino Salgueiro, Salvador Arrebola, Antônio Castro, João Rojo, Benedito Romano, José Oliva Castillo, Roque Branco, Antônio Valverde, Cecílio Dias Lopes e Lucca Gabriel. A Nossa Chácara/ Nosso Sítio foi uma iniciativa essencial para a reorganização do movimento anarquista no Brasil, após o final da ditadura de Getúlio Vargas, e foi palco de importantes congressos e encontros libertários entre 1948 até o final dos anos sessenta.

6. O Grupo Libertário Fábio Luz (depois Grupo de Ação Libertária), formado por militantes como: Edgar Rodrigues, Seraphim Porto, Roberto Das Neves, Enio Cardoso e Afonso Vieira, existiu entre a morte de José Oiticica e a fundação do Centro de Estudos Professor José Oiticica.

Com o passar do tempo após a fundação do Centro, o Grupo Libertário foi absorvido pelo CEPJO.

7. Os militares também invadiram moradias, escritórios profissionais, a Editora Germinal e roubaram centenas de pertences desses locais.

8. Edgar Rodrigues ajudou a esconder Esther de Oliveira Redes num sítio em Jacarepaguá, e através de troca de serviços "comprou" o impronunciamento dela e retirou vários documentos do processo que poderiam comprometer outros companheiros.

9. Entre os livros clássicos de Edgar Rodrigues que resgatam a história do movimento anarquista no Brasil, estão: Socialismo e Sindicalismo no Brasil (1675-1913) de 1969, Nacionalismo e Cultura Social (1913-1922) de 1972, Trabalho e Conflito (1900-1935) de 1977 e Novos Rumos - Pesquisa Social (1922-1946) de 1978.

10. Anarquistas e os Sindicatos em Portugal (1911- 1922) de 1981,A Resistência Anarco-Síndicalista à Ditadura (1922-1939) de 1981 e A Oposição Libertária em Portugal (1939-1974) de 1982.

11. Esther de Oliveira Redes não assinou a ata de fundação, mas esteve presente nas reuniões e contribuía para a manutenção do arquivo até comunicar seu desligamento do mesmo.

12. Conseguiu com Sônia Oiticica, por exemplo, cartas de quando seu pai José Oiticica, esteve preso na Ilha Rasa (Rio de Janeiro) entre 1924- 1925.

13. Outros estudos acadêmicos sobre Edgar Rodrigues foram feitos, entre eles, constam-se: a tese "Edgar Rodrigues: I Tempi e Le Opere" de Marco Mazzeo, Universidade de Nápoles/Itália (2005) e o trabalho de pós-doutorado (monografia) "A Sementeira de Idéias - Edgar Rodrigues Uma Vida Dedicada A Memória Anarquista", de Anna Gicelle Garcia Alaniz, para a Faculdade de Educação da Unicamp (2008).